Entrevista com Darcy Ribeiro
Por Elisabeth Orsini
Jornal O Globo
19 de Fevereiro de 1995 - Domingo

Um novo gênero de civilização

O antropólogo Darcy Ribeiro, 73 anos, costuma dizer que os índios fizeram mais por ele do que ele fez pelos índios, Já que foi a defesa das populações indígenas que fez seu nome ser respeitado mundialmente. Pronto para lança pela editora Companhia das Letras "O povo brasileiro", ele diz que está comovido. Mais uma vez com os índios que, reunidos, tem passado noites em claro batendo tambores para curá-lo do câncer no pulmão. Reclamando o o tempo todo da calvície provocada pelo tratamento quimioterápico, 0 autor do romance Maira" e de ensaios como "O processo Civilizatório", já traduzidos em dezenas de idiomas, tenta driblar a doença alternando o ar puro de Marica, o burburinho de Copacabana e a lembrança de um amor platônico por uma índia Kadiwéu que ainda guarda no coração.

Tentando disfarçar o cansaço com uma grande dose de bom humor, Darcy Ribeiro explica sua teoria sobre a formação da sociedade nacional e diz que os brasileiros são um novo gênero de civilização", com um passado e um futuro diferentes dos europeus e americanos. Durante a entrevista, interrompida muitas vezes por telefonemas e visitas inesperadas, ele fez uma espécie de balanço de sua trajetória intelectual. Apesar da doença, ele mostra conservar a mesma agilidade mental de sempre. Darcy Ribeiro ainda se sensibiliza com a terra de Maira, personagem pinçado de uma crença dos índios Kaiowä. Foi com eles que o antropólogo passou a acreditar que, se dançar até o corpo ficar muito leve, levitará até a "terra sem mares, a terra de Maíra".

O GLOBO - Para quando está Previsto o  lançamento de "O povo brasileiro?
DARCY RIBEIRO- Esta semana estive com o editor da Companhia das Letras, e acertamos o lançamento para abril. O livro mostra a minha visão do processo de formação do povo brasileiro e da construção do sentimento de ser brasileiro. Comecei a escrever no exílio, no Uruguai, entre 1964 e 68, quando não havia nenhuma teoria sobre o Brasil. Aliás, o brasileiro é inexplicável em si mesmo.

O GLOBO- Como vê as teses sobre a formação do Brasil expostas em "Casa grande e Senzala", de Gilberto Freyre?
DARCY - Este é ainda o melhor livro, só que fala do ponto de vista da casa grande, predominante até agora. O que acontece é que nós estamos fora dos quadros da História. O americano pode considerar que o passado dele está na Europa, mas aquele passado não era o nosso. Aqui estavam os índios. O nosso presente não é o mesmo, nem o nosso futuro. Então nós não podemos tomar tranquilamente a história europeia como nossa.Por isso o primeiro trabalho que fiz foi um ensaio sobre o processo Civilizatório, uma teoria geral de dez mil anos de História que tornasse o Brasil explicável. Depois escrevi "As Américas e a
Civilização", no qual tentei ver qual era causa do desenvolvimento desigual, entender porque alguns povos americanos se desenvolveram muito e outros foram incapazes de um progresso sustentável. Esses meus primeiros livros sobre a antropologia da civilização já têm 98 edições nas principais línguas do mundo. Eles são uma espécie de preparação para o povo brasileiro. O que me angustiava era não terminar o livro para o qual aqueles outros foram escritos. Felizmente consegui entregar ao editor. Eu posso dizer que fiz isso em 40 dias, mas na verdade foram 30 anos mais 40 dias.

O GLOBO - Qual é exatamente a síntese de "O povo brasileiro"?
DARCY- Eu tento mostrar como, quando e onde surge o brasileiro, diferenciado do índio, do negro e do português. Qualquer índio sabe de que tribo é o outro, qualquer português sabia de que povo era. Mas aqui começaram a surgir mestiços que não eram identificáveis nem como negros, nem como índios, nem como portugueses. Eles eram ninguém. Já com os africanos era diferente. Essa gente que não era ninguém, a partir de uma terra de ninguém, é que construiu um ser, que é o brasileiro. O caso do Brasil é muito diferente do caso dos Estados Unidos, do Canadá ou da Austrália, porque naqueles países alguns europeus que sobravam foram exportados para lá, limparam o terreno, puseram o índio como obstáculo e reconstruíram a paisagem original da Inglaterra. Prosseguiram uma história anterior, sem nenhuma novidade. Nós somos um gênero novo de humanidade. Uma nova Roma, mas feita
de sangue negro e lavada em sangue índio.

O GLOBO - Qual é a situação dos índios brasileiros hoje?
DARCY- Eles são um caso incrível de resistência heroica. Resistiram a 500 anos de perseguição, contra todas as pestes do homem branco. Primeiro as doenças, que não conheciam. Eles, que não tinham nem cárie, pegaram sarampo, varíola, pneumonia e gripe. Eram cinco milhões e depois de dois séculos caíram para um milhão. Em 1950 calculei que havia no Brasil pouco mais de 100 mil índios, mas hoje eles são 300 mil. Passado o tempo, eles começaram a se adaptar a essas enfermidades e cresceram. Passaram 500 anos, nós somos diferentes, e eles também. E estão cada vez estão mais parecidos com o brasileiro comum com quem convivem. Em geral, se vestem como nós e falam português. Mas o sentimento que eles tem é outro. Como descendem de comunidades muito antigas, recordam e cultuam aquilo e, consequentemente sentem que são outra gente. É um sentimento que o judeu também tem. O judeu não é racial como o cigano também não é - mas ele tem sentimentos que são judeus.

O GLOBO - Fale sobre o seu convívio com os índios.
DARCY - Eu vivi toda a minha vida ligado ao problema indígena. Quando fui trabalhar com Rondon- a figura mais bonita da História do Brasil, seu maior humanista - passei dez anos em aldeias indígenas. Em geral um antropólogo fica dois, três meses. Exagerei porque gostei dos índios e fui ficando, e escrevi uma obra muito grande sobre eles nesse período. Sempre me encantei com a solidariedade dos índios. Nesses anos todos nunca vi um índio bater no outro, não havia briga. Eles têm um sentimento de simpatia recíproca e de amizade muito profundos. Quando um índio faz uma flecha, um cesto ou um vaso de cerâmica, faz muito mais perfeito do que o necessário para funcionar. E porque, em cada peça que faz, o índio está se retratando, para o outro índio que vier saber que foi ele quem fez aquilo. É como caligrafia.

O GLOBO - Você assimilou algo da cultura indígena?
DARCY - Tanto assimilei que meu principal livro, o mais vendido e mais traduzido é "Maira", um romance sobre os índios no qual eu recordo os anos em que vivi ao lado deles. Levei milhares de horas escrevendo esse livro no exílio e quando o escrevia me sentia lá no meio deles. Então eu diria que estou realmente impregnado daqueles anos. Sou um intelectual atípico. Não pareço com os demais intelectuais. Em parte porque passei dez anos para além das fronteiras da civilização e, por isso, tenho una visão do Brasil que é de dentro para fora. Não é a visão do intelectual comum.

O GLOBO- E uma paixão indígena, o senhor já teve?
DARCY - Uma das grandes paixões da minha vida foi uma índia que se chamava Iuiuicui, da tribo Kadiwéu. Mas não conto como aconteceu, foi platônico (risos). O que significa esse nome? Não significa nada. É apenas um nome como o nosso José ou João.

O GLOBO - O antropólogo Claude Lévi-Strauss influenciou sua obra?
DARCY - Ele é uma grande figura da antropologia mundial. Durante a guerra, vários sábios que fugiram da guerra da Europa foram parar em São Paulo, que se tornou o melhor lugar do mundo para se estudar Ciências Sociais exatamente por causa da presença dessas pessoas, entre elas Lévi-Strauss. E foi a presença dele no Brasil que fez com que Florestan Fernandes se convertesse num antropólogo, assim como eu.

O GLOBO - Que intelectual brasileiro você mais admira?
DARCY- Eu o descobri por acaso numa biblioteca em Montevidéu, quando descobri um livro publicado em Paris, em 1903, deste brasileiro incrível que foi Manuel Bonfim. Estou providenciando a republicação do livro lá fora, que se chama "Brasil história, Brasil nação". Ele foi o brasileiro que alcançou o nível de compreensão mais profundo do Brasil. Escreveu o livro mais claro, mais inteligente, que mostrava que o racismo decorria do interesse em manter a sociedade como ela está. Acho um absurdo que as pessoas não conheçam a obra desse pensador avançado.

O GLOBO- Fale sobre a sua Juventude.
DARCY - Aos 26 anos, eu era um jovem brilhante que podia ter vários empregos. Eu tinha muitas ofertas de trabalho, mas decidi muito cedo viver com os índios e estudar com eles, o que foi surpreendente. E que em São Paulo havia um meio científico tão refinado que era possível induzir um jovem de que o melhor que ele podia fazer de sua vida era levar adiante o saber humano. O conhecimento do gênero humano era muito valorizado. Foi para estudar que eu me enfiei no meio dos índios. Um ideal científico tão alto só é possível onde há cientistas de alto padrão. Acho que isso explica a minha história.

O GLOBO - Como anda a sua relação com o meio acadêmico?
DARCY - Sou membro da Academia Brasileira de Letras e me sinto muito bem entre os colegas acadêmicos. A Rachel de Queiroz acaba  de escrever um artigo muito bonito sobre mim. Eu escrevi uma resposta muito sentimental para ela, dizendo que eu a amava muito e que teria casado com ela se nos tivéssemos encontrado mais cedo.

O GLOBO - Qual será o futuro da esquerda no Brasil?
DARCY - A esquerda considera que não sou marxista. E a direita me combate, dizendo que sou marxista. Peco porque sou comunista, marxista, e peco também porque sou uma pessoa autônoma pensando sobre o Brasil e sobre a obra de Marx. A verdade é que eu sempre lutei para melhorar o Brasil. Lutei para salvar os índios, lutei pela reforma agrária e agora pela questão da escola pública. Eu diria que prefiro ser um derrotado estando deste lado a ser um vitorioso do lado de quem persegue índio.

VOLTA



                                                                                      

Darcy Ribeiro (Montes Claros, 26 de outubro de 1922 - Brasília, 17 de fevereiro de 1997)